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quarta-feira, outubro 29, 2003

 

AS MEMÓRIAS [I] - O Martinho da Arcada- "as voltas que uma bica pode dar"...



Se as mesas do Martinho da Arcada falassem...

"Aberta as portas em 1782, era a «Casa da Neve», pouco depois rebaptizada como «Casa de Café Italiana», porque os elegantes - e os nem tanto como isso, mas amantes da estúrdia mansa - habituavam-se por então a degustar a infusão de moca. Da «neve» ou de «café», tratava-se de um botequim, nome que em finais do século XVIII não tinha a conotação pejorativa de hoje. O homem que nessa época arriscou fazenda junto à arcada «do Anselmo» viera de Itália: Domingos (Domenico) Mignani, que se sabe ser ainda o proprietário em 1795. No dealbar do século seguinte o futuro Martinho cruzava-se com os medos das polícias, às quais chegara uma denúncia garantindo que o botequim dava guarida a liberais e jacobinos. A Intendência da Polícia viria entretanto a apurar que à mesa se jogavam jogos de banca e dado: outra nota abaixo de dez, imperdoável. Por volta de 1815, seguindo nós a lição do olisipógrafo Júlio de Castilho (A Ribeira de Lisboa, vol. III, pág. 277 ss.), o dono do botequim era um Simão Fernandes com certeza mais hábil nas relações públicas do que Mignani, pois transformara a casa num poiso da «alta». Ainda e sempre o seu negócio principal era a «neve», servida todo o ano..Em 1823 regista-se novo dono, de nome Anselmo, provavelmente diverso daqueloutro com que se apelidara a arcada, a quem sucedeu, logo em 1824, um José de Melo, antecessor de Martinho Bartolomeu Rodrigues, que veio a ser o Martinho autêntico deste Martinho-café da crónica.Martinho Rodrigues entra a dominar o negócio por volta de 1829, 1830, e a baixa de frequência obriga-o a fazer obras ditas de «reforma». Cabe sublinhar que o Martinho do Martinho foi, melhor escrito, o Martinho dos Martinhos, uma vez que aproveitaria a embalagem, para abrir um segundo estabelecimento, o Martinho do Largo de Camões, mantendo interesses como «contratador da neve» consumida em Lisboa - uma espécie de monopólio que lhe fazia imenso jeito. Do Martinho dos Martinhos até ao fim do século passado a posse do café-restaurante (e cada vez menos sorvetaria) do Terreiro do Paço andou pelas mãos de Julião Bartolomeu Rodrigues, herdeiro directo - filho? - de Martinho falecido, e delas desandou para as de José Isidro Pereira. Foi Pereira que em 1920 o trespassou à firma Mourão & Simões (ou Mourão, Simões & Carneiro). Este capítulo recente já sei contá-lo melhor. Rapidamente Mourão, Simões & Carneiro ficou reduzida a Alfredo Mourão, um transmontano nascido em Vila Verde (do Minho) pela razão simples de a mãe ter ido lá ver o pai, saído de Chaves para agenciar melhor vida. Alfredo Mourão consorciou-se com D. Maria Judite de Sá Mourão. E o casal começou por trabalhar em Lourenço Marques, onde foi dono do Hotel Paris. Em Lourenço Marques viria ao mundo D. Albertina de Sá Mourão, «cabeça» da firma Alfredo Mourão, Herdeira, que eu venho a conhecer sentada a uma mesa da Pastelaria Ferrari. Como se explica esta confusão? Explica-se facilmente, e não é confusão nenhuma. O pai de D. Albertina adquiriu em 1919, com os seus sócios episódicos, o famoso salão da Rua Nova do Almada. Um ano depois proporcionou-se-lhe a compra do Martinho da Arcada. Quando Alfredo Mourão se separou de Simões e Carneiro, o problema das duas casas para gerir foi resolvido da seguinte forma: o marido ficaria tomando conta da Ferrari e a mulher instalar-se-ia no Martinho da Arcada. Foi D. Maria Judite Mourão quem privou de perto com aquele escritor «triste figura, com um chapéu muito porco, mas afinal um génio», Fernando Pessoa. A passagem entre aspas é da filha, D. Albertina, que acrescenta:

«O Fernando Pessoa tinha um defeito: bebia muito vinho tinto.»

Detalhe que circula em vários livros e pelo menos numa fotografia mostrando Pessoa a empinar um copo ao balcão de um Val do Rio. A novidade, se o leitor quiser, é esta:

«Minha mãe, quando o Fernando Pessoa aparecia no Martinho à noite, dizia-lhe: ‘Vá, sr. Pessoa, sente-se lá e coma uma sopinha connosco !’ Ele aceitava, pois claro!»

A dr.ª Ana Maria Matos, filha de D. Albertina, interrompe e diz:

«E o Fernando Pessoa pagava a sopa com um poema...»

D. Albertina confirma. Tem em casa, acompanhados de um bilhete, uns versos autógrafos de Fernando Pessoa («Dizem? / Esquecem...», publicados por Maria Aliete Galhoz na Obra Poética -volume único, Aguilar, Rio de Janeiro, 1965) deixados no Martinho como paga de uma refeição. Os versos haviam-se desencaminhado e aqui há anos um antiquário, vendo que estavam escritos em papel timbrado da Ferrari, comum de resto ao Martinho, cuja menção vem em rodapé, telefonou a D. Albertina perguntando se lhe interessariam. Claro que sim. Mas o autógrafo, para voltar aos Mourões, valeu mil escudos.D. Albertina de Sá Mourão não pôde mostrar-me «a» mesa de Fernando Pessoa: está emprestada à Gulbenkian. E mais do que a mesa - também « a» chávena, « o» pires e « a» colher.
O Martinho da Arcada versão 1982 não dista muito daquele que o poeta correspondente comercial frequentou. A mãe de D. Albertina fez no estabelecimento as últimas obras de monta, nomeadamente reduzindo a área da cozinha. Esta terça-feira, se Pessoa entrasse no Martinho depois do meio-dia, admirar-se-ia, sim, com o magote de gente que almoça pratos rápidos acotovelando-se ao balcão minúsculo.
«No tempo de minha mãe», diz D. Albertina, «já se comia bem no Martinho. A ementa era mais pequena do que é hoje, mas servia-se tudo fresco, a carne, o peixe... Como nós fazemos».
O problema eram os frequentadores que entravam, ocupavam uma mesa e depois não saíam nem à lei de Deus Padre. Solução (de D. Albertina): mandar colocar as toalhas para o almoço a partir das onze e meia, informando-se os relapsos bebedores de uma só xícara de café que «agora vamos precisar da mesa, desculpe».Se estas mesas falassem... As mesas do século XX. Diriam que Fernando Pessoa foi um seu «habitué», como deixou registado no poema Sá Carneiro:

É como se esperasse eternamente
A tua vinda certa e combinada
Aí embaixo, no Café Arcada,
Quase no extremo deste continente.


Mas diriam outrossim que Mário Sá-Carneiro, destoando do amigo, não ia muito à bola com o Martinho. Lembre-se a carta que datou de Paris (7.8.1915):
Espero uma resposta telegráfica do meu Pai a uma carta que lhe escrevi daqui no dia da minha chegada (...). Eu pedia-lhe nessa carta que me deixasse, por tudo, ficar aqui - pelo menos até me mandar ir para a África. Em suma, bem frisado: tudo menos Lisboa. (...) Acima de tudo me arrepia a ideia sem espelhos de, sem remédio, novamente fundear no Martinho... Não sei porquê esse café - não os outros cafés de Lisboa, esse só - deu-me sempre ideia dum local onde se vem findar uma vida: estranho refúgio, talvez, dos que perderam todas as ilusões, ficando-lhes só, como magro resto, o tostão para o café quotidiano - e ainda assim, vamos lá, com dificuldade. Tanto lepidopterismo!»
Em 1935 o «estranho refúgio» ainda atraía Pessoa. O café, esse, custava cinco tostões.

Perto, «o rio triste»

A administração do Martinho da Arcada é feita de um primeiro piso do Chiado onde a firma Alfredo Mourão, Herdeira, tem o escritório. Já depois do 25 de Abril, D. Albertina de Sá Mourão chamou para sócio o sr. Gastão Silva, antigo dirigente desportivo do Benfica (uma figura histórica do futebol), funcionário público durante dezoitos anos e, por coincidência, frequentador do Martinho. A Alfredo Mourão, Herdeira, rege os destinos da Ferrari, instalada mesmo ao lado. Para o Martinho achou D. Albertina uma outra fórmula, convidando a entrarem na sociedade, além de Gastão Silva, três empregados antigos do café-restaurante da Arcada, Gregório Lopes Capelo, António Duarte e Alberto Henriques. Nenhum deles conheceu Fernando Pessoa. Talvez só Almada Negreiros, que volta e meia, entrado em anos, aparecia por lá.Mas o Martinho da Arcada deu descanso, convívio, café quente e bons almoços a legiões de homens conhecidos, escritores, artistas, arquitectos, ministros...«O eng. Duarte Pacheco», lembra D. Albertina Mourão, «revelou um dia que vinha ao Martinho desde os quatro anos de idade, com o pai. Quando foi ministro, com o gabinete no Terreiro do Paço, continuou a ser cliente. E outro ministro, o eng. Arantes e Oliveira, comia do Martinho: mandava sempre saber qual era o prato do dia. E lá comeram ministros da Marinha, Quintanilha, Américo Tomás...»A Bolsa, meio parada, « faz muita falta ao Martinho». E o Terreiro do Paço também não é o que era há bem poucos anos, engraxadores, moços de fretes, tertúlias, multidão. Restam os automóveis.No Martinho, escreveu Júlio Dantas, «fizeram-se e desfizeram-se ministérios (...), combinaram-se pronunciamentos e sedições; durante alguns decénios, o velho café (...) foi o coração político da cidade» (Lisboa dos nossos avós, 1966). Coisas do século XIX.Outros Olisipógrafos seguem o rasto, até ao Martinho, de Rafael Bordallo Pinheiro, Júlio César Machado, Magalhães Lima - este mais certo cliente da Ferrari, aonde ia encontrar-se com o seu amigo Alfredo Mourão. A dr.ª Ana Maria Matos, que um dia poderá ter de pensar duas vezes se troca o ensino pela gestão hoteleira, acrescenta à lista de figuras os seus e meus contemporâneos Rui Grácio e Rómulo de Carvalho (António Gedeão).
Bom, e já agora acrescento eu o de Fernando Namora, que situa no Martinho da Arcada parte da intriga do seu último romance, O rio triste. O café habitual de Namora é na Infante Santo, perto de casa, mas adivinho que o condeixense há-de ter comido algumas suculentas doses de bacalhau na sala grande do Martinho, enquanto amadurecia a história exemplar de Rodrigo Abrantes. D. Albertina, se ler O rio triste, não deixará de sorrir: a páginas 35 fala-se de uma reportagem assinada por... Alfredo Mourão.
As voltas que uma «bica» pode dar. "[in, Fernando Assis Pacheco - JL Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 44, 26 de Outubro de 1982]

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